O GRANDE MEDO DE 1987 – VOLUME 1 – UMA RELEITURA DO ACIDENTE COM O CÉSIO-137 SOB A DIMENSÃO DO MEDO

Ao revisitar a trágica situação vivenciada por nós, moradores da cidade de Goiânia, na época do acidente com o Césio 137, novamente somos confrontados com diversos sentimentos, sobretudo aqueles relacionados ao “medo” da contaminação e suas consequências potencializadas principalmente pelas informações veiculadas pelos meios de comunicação que insistiam em revelar nos seus comentários informações terrivelmente alarmantes que, na maioria das vezes, não possuíam nenhuma veracidade ou comprovação científica.

Ao rememorarmos essa situação, pudemos perceber ainda que era evidente a falta de solidariedade, penalidade e empatia com a dor que as famílias diretamente envolvidas estavam vivenciando e suas nefastas consequências físicas e emocionais, além das constantes tensões provocadas pelo risco iminente de morte, concretizadas em especial pelo falecimento da criança Leide das Neves, contaminada após comer um alimento com Césio-137. Além disto, rememoramos também a indignação pelo descaso das autoridades estaduais quanto ao descarte indevido do equipamento hospitalar que continha a bomba de Césio – 137, causador de toda essa tragédia.

Ainda hoje, posso me lembrar dos jornais publicando matérias, com reportagens sobre produtos goianos sendo rejeitados em outros estados, como foi o caso de um carregamento de bananas que foi impedido de ser descarregado em outro Estado, pelo simples fato da placa do caminhão ser de Goiânia. O mesmo aconteceu com leite e outros tantos produtos oriundos ou mesmo com suspeita de terem apenas transitado pelo Estado de Goiás.

O pânico gerado pela disseminação do medo nas mídias de comunicação da época, gerou ainda situações inusitadas e ao mesmo tempo constrangedoras, como foi o caso de nossa visita à familiares em Minas Gerais, durante as férias gozadas após cinco meses do evento. Nessa ocasião, fomos questionados se realmente era seguro para os demais parentes a nossa presença lá … ?

Realmente passamos por um misto de sentimentos só experimentado novamente durante a pandemia do Covid-19, quando experimentamos novamente o medo da contaminação e suas consequências indefinidas, a falta de solidariedade às vidas ceifadas, discriminação dos contaminados, indignação pela indiferença do poder público da época, comprovada pelos reiterados empecilhos na compra de vacinas e nas ações diretas contra a vacinação, mas sobretudo, novamente a disseminação do “medo” pelas diversas mídias da época.

Dentre as muitas situações vivenciadas, me recordo ainda que à época do acidente radiológico, estudávamos no Colégio Liceu de Goiânia, situado na Rua 21, no Setor Central de Goiânia, enquanto minha residência estava localizada no Conjunto residencial Aruanã III. O trajeto entre minha residência e a escola era feito de ônibus, passando pela Avenida 83 no Setor Sul, em seguida contornava a Praça Cívica até descer pela Avenida Araguaia e encontrar a Avenida Paranaíba. Seguia então por essa via até subir pela Avenida Tocantins, contornava o outro lado da Praça Cívica e novamente retornava ao Conjunto Aruanã III através da Avenida 83. Quando o ônibus chegava no trecho da Avenida Paranaíba que era próximo à Rua 57, distante aproximadamente dois quarteirões (cerca de 200,00 m) do ferro velho do Devair, tanto o Cobrador quanto o Motorista do ônibus eram enfáticos em nos orientar: “Atenção! todos devem abaixar as cabeças… Evitem ser contaminados, abaixem as cabeças e só levantem quando estiverem seguros…”, o que no entendimento deles, deveria acontecer apenas quando chegássemos ao início da Avenida Tocantins. O próprio Cobrador também abaixava sua cabeça.

O curioso nessa cena (além de cômica) é que hoje, ao refletirmos um pouco mais, encontramos o seguinte questionamento: “Ao abaixarmos nossas cabeças não ficaríamos mais próximos ao assoalho do ônibus e consequentemente ampliando o risco de respirarmos partículas de Césio-137 supostamente deixados nele por passageiros que estiveram nesses locais?”. Ou ainda “se permanecêssemos na posição orientada, a radiação passaria sobre nossas cabeças e assim não seriamos contaminados?”. Ao analisarmos as imagens brutas das entrevistas, pudemos perceber ainda que, durante as gravações com as pessoas contaminadas, os repórteres também se posicionavam agachados com a cabeça baixa e segurando o microfone com o braço esticado, talvez pelo mesmo motivo: “acreditavam que a radiação passaria por sobre suas cabeças e assim, não seriam contaminados…”

Ao rememorarmos o acidente com o Césio-137 em Goiânia, somos inevitavelmente atravessados por sentimentos que mesclam dor, indignação, incompreensão e temor — sentimentos que, apesar do tempo decorrido, ainda ecoam na memória de quem os viveu. A tragédia revelou não apenas os impactos devastadores da negligência humana, mas também as fragilidades sociais em tempos de crise: o medo alimentado por desinformação, o preconceito disfarçado de precaução, e a ausência de acolhimento e solidariedade. Reviver essa história é reconhecer os erros do passado, entender suas marcas profundas e, sobretudo, reforçar a importância da responsabilidade coletiva, da informação qualificada e da empatia, para que não se repitam os silêncios, os descasos e os sofrimentos do passado.

Dessa forma, reforçamos a relevância deste estudo como instrumento para desconstruir o sentimento de “medo” — especialmente em relação à radiação — que se enraizou em nossa sociedade. Ao revisitarmos o episódio do acidente com o Césio-137 sob uma perspectiva mais consciente e crítica, buscamos compreender com maior profundidade o ocorrido, analisando como a veiculação imprudente e sensacionalista de informações equivocadas contribuiu significativamente para o pânico coletivo que se instaurou entre a população.

 

 

Elainy Aparecida de Jesus Mundim Costa Monteiro

 

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